A Aparição
por Licínia Quitério
A gente vai ali e já vem, o que tem a fazer não é coisa de levar mais de uma hora e, depois de tudo feito, senta-se um bocado a tomar um café, a cumprimentar este e aquela, a sossegar, a olhar a rua, sossegada rua de bairro sossegado de sossegada terra.
Do lado de lá, envolta no sossego, a aparição de um homem velho, alto, muito magro, de barbas brancas a excederem a máscara que a pandemia trouxe. Era o que nos estava a fazer falta, uma praga, uma peste, qualquer nome pode ter a doença que nos escondeu o sorriso. O homem está doente, nota-se, amparado a uma canadiana, a descer os degraus, muito a custo, uma mão na parede.
A par dele, um homem novo, baixo, menos magro, com dois sacos cheios do que trouxe da casa dos degraus onde pessoas que têm vão deixar o que não lhes faz falta, o que lhes sobra ou, também acontece, o que adquirem para ali deixar. O homem novo espera que o velho acabe a descida, puxa duma luva e o velho enfia-a na mão com que se firma na canadiana. Na outra mão, o velho faz questão de transportar um dos sacos, o mais pequeno. Caminham assim, o mais velho dois passos à frente, sempre a virar-se a vigiar o outro. Será um filho, quem sabe um neto, ou apenas e sobretudo um amigo.
Saio e sigo-os com o olhar, meio encoberta por uma coluna, que uma súbita vergonha me tolda a curiosidade que eles não devem perceber. Mil pensamentos me atravessam, me incomodam, me dizem da minha impotência perante as dores humanas que diariamente homens poderosos provocam com perversidade, outros não poderosos com indiferença.
Sigo, perco-os de vista, ou tudo não passou de uma aparição, provocada por esta minha mania de inventar histórias.
Entro na loja dos chineses para comprar uma qualquer inutilidade. A chinesinha diz-me “obrigadinha”, e mesmo com a barreira da máscara percebe-se que rolou o nosso “r” que já não é o seu “l”. O mundo gira. Estalou a guerra, mais uma. O mundo muda. A loja dos chineses irá fechar, não tarda serão declarados inimigos ou amigos dos inimigos, por isso mesmo temos de estar atentos às notícias. Guerras vêm, guerras vão. Só a miséria não muda, não gira. Fica, nos mesmos de sempre. Os pobres não passam de danos colaterais das guerras, danos menores, diga-se.
Licínia Quitério
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